Preceito Fundamental

"Preceitos fundamentais" são direitos civis que deveriam ser protegidos constitucionalmente em relação à vida, liberdade e propriedade. São princípios descritos na nossa Constituição Federal como inalienáveis e que incluem a não submissão a tratamentos desumanos ou degradantes, bem como o acesso à liberdade de expressão, à manifestação de pensamento e à igualdade entre todos os membros da sociedade civil. No entanto, somos diariamente confrontadas com questionamentos sobre nossa liberdade em relação aos nossos próprios corpos e à capacidade de expressar nossas ideias, muitas vezes condicionadas pelas normas sociais que nos cercam.

Nesta exposição, buscamos explorar o confronto entre a liberdade de expressão, sistemas de opressão e o direito à individualidade em relação aos nossos corpos, sexualidade e vozes.
Por um lado, somos frequentemente silenciadas e moldadas para nos conformarmos com as normas sociais predominantes. As obras de Guler Ates e Márcia X apontam para a dominação religiosa de diferentes crenças, além disso, Guler, assim como Anna Costa e Silva & Nanda Félix, reforçam o silenciamento - ou velamento - dos corpos em pauta.

Por outro lado, destacamos as rupturas das normas e as identidades que se tornam reação, campos de resistência e até mesmo contra-ataques à opressão e, principalmente, à violência física. Vemos isso nas obras de Ana Clara Tito, Polvo de Gallina Negra e Lyz Parayzo. Parayzo também reverencia Lygia Clark, assim como Claudia Jaguaribe exalta Liuba, ambas as artistas criam diálogos entre décadas e traçam paralelos temporais. A obra de Thix, de forma singular, também busca na história da arte técnicas de tratamento de imagem que enaltecem corpos esquecidos e marginalizados. O Ateliê TRANSmoras repensa corpos em relação às suas formas e identidades através de vestuários que em outrora foram descartados, mas que de certa forma se ressignificam em abrigos, em novas formas de se portar e apresentar. Em quase abstração, Geoneide Brandão pinta um corpo que nem sempre o identificamos como tal. Ora mulher, ora forma/massa/lava. Numa pose na qual poderia estar se submetendo a algo ou alguém, ou até mesmo se encolhendo, se reverenciando ou simplesmente relaxando. Esse corpo-volume nos faz questionar sobre o nosso próprio julgamento ao perceber um corpo fêmea, mesmo sem sabermos ao certo sua identidade.

A mostra também desafia a forma como o corpo feminino cisgênero é observado pela sociedade. Este é um tema debatido há décadas na arte e, embora tenha sido explorado repetidamente, continua sendo extremamente relevante. Esses corpos ainda enfrentam as mesmas violências que datam de séculos atrás. As artistas Maria Antonia e Giovanna Langone colocam em pauta como pessoas são empregadas na posição de objeto ou de um pedaço de carne que pode ser fatiado, moído, devorado, consumido. Santarosa Barreto nos alerta para sistemas de classificação e opressão da mulher perante a sociedade patriarcal. Carla Santana carrega o peso de massas de argila, que mancham seu corpo e alteram sua postura sob o fardo emocional da opressão cuja mulher racializada é submetida.

O nome da exposição, "Preceito Fundamental", teve como referência a ADPF 442, que desde 2017 pauta a descriminalização do aborto e que ressurgiu há menos de dois meses, trazendo consigo a esperança do nosso direito de liberdade e escolha. Nesse mesmo intervalo de tempo, vimos a pauta ser mais uma vez engavetada, se juntando novamente aos inúmeros outros preceitos que são ignorados ou postergados até o momento que convém (a quem?). Mais uma vez, o conservadorismo nos faz esperar, mas sem impedir a nossa fala.

Outubro 2023
Gabriela Davies e Maíra Marques - Comadre


Artistas Participantes:
Ana Clara Tito, Anna Costa e Silva & Nanda Félix, Ateliê Transmoras, Carla Santana, Claudia Jaguaribe, Geoneide Brandão, Giovanna Langone, Guler Ates, Lyz Parayzo, Márcia X, Maria Antonia, Polvo de Gallina Negra, Santarosa Barreto e Thix.

Por meio da venda das obras na exposição, a Comadre e o Espaço Cama destinarão uma parte dos recursos ao Projeto Vivas, organização sem fins lucrativos que auxilia mulheres e pessoas com a capacidade de engravidar a acessarem serviços de aborto legal, tanto no Brasil quanto no exterior.